Educação Abandonada: De Bujari a Porto Alegre, o Brasil que finge ensinar
Reportagem do Fantástico sobre uma escola da comunidade do Limoeiro, no município de Bujari, no Acre me fez voltar no tempo. Lembrei do ano de 2003, quando trabalhei no INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). Eu e meu amigo Alexandre Varela fazíamos parte da equipe de Controle de Tratamento da Informação.
09/06/2025 08h36Atualizado há 1 semana
Por: Jorge Francisco de Oliveira Guimarães
No chão da escola esquecida, o olhar da infância carrega a denúncia que os números escondem. De Bujari no Acre a Porto Alegre no RS, a educação segue sendo tratada como ilusão. É hora de escutar quem sente na pele o abandono. / Foto: internet X
Naquele ano, os estatísticos do INEP identificaram várias irregularidades nos dados do Censo Escolar. O número de estudantes registrado em algumas cidades era bem maior do que os dados populacionais do IBGE indicavam para a faixa etária escolar. Diante disso, fomos visitar pessoalmente várias cidades para ver a situação com os próprios olhos.
E o que vimos foi de cortar o coração: escolas superlotadas, sem merenda escolar, sem estrutura física adequada e, muitas vezes, sem o mínimo necessário para garantir o aprendizado. Em várias escolas, havia salas abarrotadas de livros didáticos que não estavam sendo utilizados — simplesmente porque os números de alunos estavam superdimensionados. Os livros do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) eram enviados com base nos dados informados pelas prefeituras, e muitos prefeitos inflavam o número de estudantes. O resultado era um desperdício absurdo de recursos públicos: material didático excedente, armazenado sem uso, enquanto as reais necessidades das escolas permaneciam ignoradas.
Lembro com clareza de um episódio específico. Em uma das cidades visitadas, a merenda naquele dia estava excepcional. Aproveitei o momento e, sem cerimônia, perguntei a um menino: — A merenda é sempre boa assim? A resposta foi direta e surpreendente: — Só hoje, porque vocês estão aqui. Antes que eu pudesse reagir, outro garoto, em tom de alerta, completou: — Boca fechada não entra mosca.
Aquelas palavras me atingiram como um soco no estômago. Mostravam que, mesmo crianças, eles já sabiam que falar poderia trazer consequências. Era uma lição amarga sobre como o silêncio se torna, muitas vezes, um escudo.
Ao final daquele trabalho de campo, entregamos um relatório oficial ao INEP, relatando tudo o que havíamos constatado: o superdimensionamento de dados, a ausência de infraestrutura, a falta de merenda escolar, e o mau uso dos recursos federais destinados à educação. Nossa esperança era de que aquilo gerasse mudanças reais.
Mas, infelizmente, mais de 20 anos se passaram e ainda vemos o mesmo filme repetido. De Bujari, no Acre, a Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, o descaso com a educação é o mesmo. Apesar dos recursos, das promessas e dos discursos, ainda tem criança sem o básico. A educação, que deveria ser prioridade, muitas vezes é tratada como enfeite de campanha.
E o que é mais grave: os recursos enviados pelo governo federal, que deveriam garantir o mínimo de dignidade nas escolas, muitas vezes são mal aplicados ou sequer chegam ao destino. Em Porto Alegre, por exemplo, em 2023, o prefeito Sebastião Melo destinou apenas 16,29% do orçamento municipal para a educação, bem abaixo dos 25% exigidos pela Constituição Federal no artigo 212.
Além disso, há relatos de desperdício de recursos públicos. Mais de R$110 milhões foram gastos em materiais pedagógicos, como livros didáticos e netbooks, que foram adquiridos sem consulta às escolas e acabaram armazenados, sem uso, em depósitos.
Esse tipo de gestão não só desrespeita a lei, mas também prejudica diretamente as crianças e profissionais da educação. Enquanto isso, as escolas continuam enfrentando falta de merenda, infraestrutura precária e professores desvalorizados.
De norte a sul, a educação continua sendo sulapada. A educação de verdade não é só número bonito em relatório. Ela precisa ser vivida lá na ponta, com dignidade. Porque dado mentiroso esconde sofrimento. E quem mais sofre com isso são as crianças — que, em vez de brincar e aprender, têm que se acostumar a sobreviver.
É hora de parar de fazer de conta. Educação não pode ser maquiagem. Educação tem que ser direito, tem que ser prioridade, tem que ser verdade.
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*Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do ARENA DE NOTÍCIAS.
Sobre o autor: Jorge Francisco de Oliveira Guimarães é Cientista Social, professor de sociologia, foi sindicalista e atuou por 16 anos na Câmara dos Deputados. Trabalhou no INEP, contribuindo com a educação pública, e foi diretor da Fundação de Assistência Social de Porto Alegre.
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Rio Branco - ACRio Branco é um município brasileiro, capital do estado do Acre, na Região Norte do país e principal centro financeiro, corporativo, político e cultural do estado. É a capital mais ocidental do Brasil, a 3 030 quilômetros de distância de Brasília, capital federal, e localiza-se às margens do Rio Acre.