Sidkron topo
Educação/Tecnologia

“A IA pode simular atenção, mas não sente, não sofre, não sonha”, alerta pesquisadora sobre substituição de professores

Em entrevista exclusiva, Jullena Normando, doutoranda em Comunicação pela UFG e Universidade da Califórnia, analisa os impactos da inteligência artificial na educação e defende que, apesar dos avanços tecnológicos, o papel do professor como mediador crítico e ético permanece insubstituível.

16/05/2025 11h14Atualizado há 4 semanas
Por: Luiz Cláudio Cavalcante
Enquanto o olhar infantil se fixa na tela, o que está por trás da interface não é um ser humano, mas um algoritmo | Reprodução Internet
Enquanto o olhar infantil se fixa na tela, o que está por trás da interface não é um ser humano, mas um algoritmo | Reprodução Internet

A inteligência artificial já está ocupando o espaço dos professores em algumas escolas do mundo — e levantando dilemas urgentes sobre o futuro da educação. Enquanto instituições como a Alpha School, no Texas, implementam modelos educacionais baseados em tutores virtuais que adaptam conteúdos conforme o desempenho individual dos alunos, especialistas se dividem sobre os benefícios e riscos dessa transformação.

Em meio a esse cenário de mudanças aceleradas, o jornalista Luiz Cláudio Cavalcante, do Arena de Notícias, conversou com a pesquisadora Jullena Normando, doutoranda em Comunicação pela UFG e Universidade da Califórnia (San Diego), que analisa os impactos desse avanço tecnológico na educação. Professora universitária da PUC-GO e especialista em Comunicação e Inteligência Artificial, Normando traz uma perspectiva crítica e equilibrada sobre o tema, reconhecendo o potencial da IA como ferramenta pedagógica, mas alertando para os riscos de sua adoção irrefletida.

Na entrevista a seguir, a pesquisadora discute os limites éticos da substituição de professores, a impossibilidade de replicar artificialmente a sensibilidade humana e os caminhos para uma integração responsável da tecnologia nos ambientes educacionais. Para Normando, "a IA pode até simular atenção, mas não sente, não sofre, não sonha. Se o que está em jogo é a formação de sujeitos conscientes, isso exige encontro, presença e responsabilidade afetiva."

Arena de Notícias: A senhora mencionou que a IA “simula atenção, mas não sente, não sonha”. Em sua perspectiva, o que se perde, na prática pedagógica, quando a escuta empática do professor é substituída por respostas automatizadas?

A pesquisadora Jullena Normando, doutoranda pela UFG e Universidade da Califórnia, ressalta que o professor não é apenas transmissor de conteúdo, mas coautor da experiência formativa. “A IA organiza dados; o professor sustenta vínculos | Arquivo Pessoal

Jullena Normando: A IA pode reconhecer padrões, mas não reconhece sujeitos. Eu diria que, de alguma maneira, perde-se o lugar onde o aluno é visto para além da pergunta que fez: eu me refiro às nuances de contextos e às deixas simbólicas típicas da interação face-a-face. O que eu quero dizer é: A escuta empática do professor é performativa: ela acolhe silêncios, hesitações, expressões de cansaço, essas coisas. O algoritmo responde; o professor compreende. Substituir essa escuta é empobrecer o espaço de acolhimento, de suspensão do tempo produtivo, onde o aluno se percebe digno de atenção – não porque é eficiente, mas porque é.

Arena de Notícias: Muito se fala em personalização do ensino via algoritmos, mas ainda há pouca discussão sobre os impactos subjetivos dessa experiência. Como a senhora avalia a formação da identidade e da autonomia do aluno em ambientes de aprendizagem mediados exclusivamente por sistemas inteligentes?

Jullena Normando: O risco é o aluno tornar-se um reflexo retroalimentado de suas interações anteriores, capturado em padrões de comportamento preditivos. A personalização algorítmica, quando desvinculada de um projeto educativo emancipador, limita a experiência formadora a um espelho de consumo. A autonomia, no sentido freireano, exige o outro, a escuta e o dissenso – todos irredutíveis ao cálculo. Formar-se é mais que ajustar-se a um perfil; é narrar-se.

Arena de Notícias: Professora Jullena, a Alpha School implementou um modelo de ensino integralmente mediado por IA, onde o professor deixa de ser figura central. Em que medida essa transição pode comprometer a dimensão afetiva e crítica da aprendizagem?

Jullena Normando: A primeira coisa que precisamos entender é que a mediação da IA pode organizar dados, mas não sustenta vínculos. Essa transição compromete a dimensão afetiva na medida em que substitui a presença pedagógica pelo processamento técnico. A aprendizagem crítica nasce do encontro, do conflito simbólico, da escuta situada. O professor, numa perspectiva Freireana, não é apenas transmissor, mas co-autor da experiência formativa. Ao retirar esse lugar, desloca-se também o espaço da dúvida, do silêncio, do afeto – aspectos que não são ruídos, mas substrato da aprendizagem.

A imagem de uma criança aprendendo com um sistema de inteligência artificial ilustra o avanço dessa tecnologia nas salas de aula — mas também nos convida a refletir sobre o que se perde quando a presença humana do professor é substituída por respostas programadas. “A IA simula atenção, mas não sente, não sonha”, alerta a pesquisadora Jullena Normando | Reprodução Internet

Arena de Notícias: Essa percepção das nuances emocionais e contextuais parece fundamental. Sabemos que parte significativa da atuação docente envolve a leitura do contexto social, emocional e cultural dos alunos. É possível, em algum grau, transferir essa sensibilidade para os sistemas de IA ou essa mediação permanece irredutivelmente humana?

Jullena Normando: Eu acho que sensibilidade não se programa, se compartilha. A partir daí eu considero que, por mais que avancem as tecnologias de afeto sintético, o que a IA oferece é uma estética da atenção, não sua ética. A sensibilidade envolve historicidade, corpo, contexto – é situada. Sistemas podem mapear emoções, mas não sofrer com elas. O gesto de entender o que não foi dito, o cuidado com o tempo da escuta, são ainda experiências exclusivamente humanas.

Arena de Notícias: No cenário atual, em que a automação avança sobre várias profissões, qual deve ser o foco das políticas públicas e das universidades na formação de futuros professores frente à inevitável convivência com a IA nas escolas?

Jullena Normando: A formação docente precisa combinar letramento digital crítico com fortalecimento da vocação humanista. Isso inclui compreender a lógica dos algoritmos, mas também saber dizer não ao que, embora eficiente, é deseducativo. O foco deve estar na construção de uma mediação pedagógica que integre a IA como instrumento, nunca como substituto. A ideia é: preparar para usar a IA como ferramenta, não ser usado por ela.

Arena de Notícias: Interessante essa perspectiva de não ser usado pela ferramenta. Apesar das críticas, há um discurso otimista que enxerga a inteligência artificial como aliada no combate à evasão escolar e à defasagem de aprendizagem. Em sua visão, quais são os riscos e os limites dessa aposta?

Jullena Normando: O risco está em transformar uma tecnologia promissora em panaceia. A IA pode sim apoiar diagnósticos e estratégias individualizadas, mas se for usada para monitorar, ranquear ou excluir, amplifica desigualdades. O limite está na instrumentalização da escola como espaço de métrica e não de subjetivação. Evadir-se também é sintoma de um vínculo rompido, e a IA não restaura vínculo. Eu penso que o problema não é usar IA, mas não perguntar para quê (finalidade) e para quem (autoria e destino).

Ao refletir sobre os limites da IA na educação, Jullena Normando reforça que, mesmo com avanços em tecnologias de afeto sintético, a verdadeira escuta e compreensão ainda pertencem ao humano. Porque ensinar, no fim das contas, é um ato de relação — não de processamento | Arquivo Pessoal

Arena de Notícias: Sua formação e pesquisa abrangem tanto Comunicação quanto IA. Como esses dois campos dialogam quando o tema é educação? A linguagem da máquina pode, de fato, ser compatível com os processos comunicacionais que envolvem ensino e aprendizagem?

Jullena Normando: A IA simula comunicação, mas não comunica no sentido pleno – não há alteridade real, nem escuta mútua. A educação exige mais que linguagem funcional: ela convoca afetos, provoca rupturas, forma sujeitos políticos. Comunicação, nesse campo, não é transmitir, mas relacionar. É nesse ponto que IA e educação precisam ser pensadas juntas, mas com distinção de papeis. A linguagem da máquina organiza códigos, a do educador, sentidos. Acho que essa é a diferença primordial que não deve ser esquecida.

Arena de Notícias: Na sua experiência internacional, especialmente na Universidade da Califórnia, o que tem observado sobre as formas mais equilibradas de incorporação da IA em modelos educacionais que ainda valorizam o papel do professor humano?

Jullena Normando: Primeiramente, embora IA esteja presente em nossas vidas em vários contextos, como recomendação de streaming, apps de transporte etc, seu uso na Educação ainda está em fase muito inicial e os desafios vão muito além de entregas objetivas: como a escolha de um filme ou a entrega de um sanduíche. Educação tem a ver com políticas, estruturas, sujeitos.

Nos modelos mais equilibrados que acompanhei, sobretudo nos EUA, a IA é usada para liberar o professor de tarefas operacionais e ampliar sua atuação pedagógica. O professor fornece material para treinamento das IAs. O ideal é que o equilíbrio esteja no reconhecimento da singularidade de cada instância.

Arena de Notícias: Para finalizar nossa conversa, qual seria, em sua opinião, a linha vermelha que não deve ser ultrapassada quando se trata da substituição de professores por inteligência artificial? Existe um ponto de não retorno que a educação brasileira precisa evitar?

Jullena Normando: Essa é uma pergunta ética muito relevante. A linha vermelha é onde a educação deixa de formar gente para produzir dados. Se antes havia a discussão se alunos são cliente ou não, agora precisamos nos atentar para formar humanos e não reprodutores de prompts.

De maneira mais filosófica, penso que o ponto de não retorno é o apagamento do professor como sujeito político e ético da educação. Quando o educador é reduzido a supervisor de sistemas ou quando a presença humana é considerada dispensável, perdemos o centro da experiência educativa. O risco maior não é a IA ocupar espaço, mas que ela colonize o sentido do que é ensinar e aprender.

Com o ensino personalizado por algoritmos, o risco, segundo especialistas, é formar alunos moldados por padrões preditivos, limitando sua autonomia crítica. “Formar-se é mais que ajustar-se a um perfil; é narrar-se”, destaca Jullena Normando | Reprodução Internet

Em resumo...

A entrevista com Jullena Normando revela uma perspectiva profunda e necessária sobre os limites da inteligência artificial na educação. Em um momento em que escolas como a Alpha School, no Texas, já implementam modelos educacionais baseados em tutores virtuais, as reflexões da pesquisadora nos convidam a repensar o que realmente constitui o processo educativo.

Para além da eficiência tecnológica, Normando nos lembra que a educação é, essencialmente, um encontro entre subjetividades, um espaço de reconhecimento mútuo e transformação. A pesquisadora não se posiciona contra o avanço tecnológico – pelo contrário, reconhece seu potencial como ferramenta pedagógica – mas alerta para os riscos de uma adoção irrefletida que pode empobrecer a experiência educativa.

"A linha vermelha é onde a educação deixa de formar gente para produzir dados", afirma, em uma das passagens mais contundentes da entrevista. Essa frase sintetiza o cerne de sua preocupação: a possibilidade de que, em nome da eficiência e da personalização, percamos de vista o propósito humanista da educação.

À medida que avançamos para um futuro onde a convivência com a inteligência artificial se torna inevitável, as reflexões de Jullena Normando oferecem um contraponto valioso ao entusiasmo tecnológico acrítico. Elas nos lembram que, por mais sofisticados que se tornem os algoritmos, há dimensões da experiência educativa que permanecem irredutivelmente humanas – e que precisam ser preservadas se quisermos formar não apenas indivíduos eficientes, mas sujeitos críticos, éticos e conscientes.

O desafio que se coloca para educadores, gestores e formuladores de políticas públicas é justamente encontrar o equilíbrio: aproveitar o potencial da IA como instrumento pedagógico sem permitir que ela colonize o sentido do que é ensinar e aprender. Como bem sintetiza a pesquisadora, a ideia é "preparar para usar a IA como ferramenta, não ser usado por ela".

1comentário
500 caracteres restantes.
Seu nome
Cidade e estado
E-mail
Comentar
* O conteúdo de cada comentário é de responsabilidade de quem realizá-lo. Nos reservamos ao direito de reprovar ou eliminar comentários em desacordo com o propósito do site ou com palavras ofensivas.
Mostrar mais comentários
Goiânia, GO
Atualizado às 18h03
26°
Tempo limpo Máxima: 28° - Mínima: 14°
26°

Sensação

1.54 km/h

Vento

39%

Umidade

Arena
SINDIJOR 1
Municípios
SINDIJOR 2
Últimas notícias
SINDIJOR 3
Mais lidas
Arena de Notícias
Anúncio